quinta-feira, 26 de março de 2015

como viemos ao mundo eu e ela.

Foi hoje, ou ontem(?) que vi um post onde falaram sobre kristeller. Comentei de pronto: “sofri a manobra e sofro com isso até hoje”. A parte do “sofro com isto até hoje” caiu no meu colo como um tijolo. Só ali percebi que a lembrança do meu parto também me doía. E, nesses quase dois anos, eu ainda não tinha me dado conta disto, já que a minha resposta usual é de que me orgulho – e muito! – do meu parto normal.  Contextualizemos, então:

Eu, 26 anos, inesperadamente grávida do namorido mergulho no mundo da pré-maternidade. Assistida por uma GO* fofinha, era minha médica havia quase dez anos. Lá pelas 20 e muitas ou 30 semanas eu percebo seu perfil clássico cesarista – “Vamos nos preocupar com o parto mais pra frente, Aninha?”, “O pai dela é alto, né? E você tão pequenininha, como faremos isso, hein?”, “Quarta feira é o dia da Dra. atender as gravidinhas e fazer os partos.”, “Parir de cócoras é coisa que só as índias sabem fazer, a mulher moderna não tem musculatura apropriada para isso”, etc - e ensaio uma troca de médico. Não dá certo. Minha DPP** tampouco ajuda, já que caía exatamente na semana santa. Eu volto a minha médica certa de que é melhor ter alguém que saiba com quem está falando caso eu ligue em TP*** no meio da madrugada (o que, por acaso, foi exatamente o que aconteceu). Sigo nadando contra a corrente o máximo que conseguiria naquele momento com as informações que eu tinha até então. Vale lembrar que fui a primeira das minhas amigas a engravidar e, na minha família, o último “bebê” tirou carteira de motorista este ano. Então não tinha em quem me espelhar. Desbravei – e ainda desbravo - eu mesma o caminho que queria trilhar. Nunca duvidei que ela nasceria de parto normal. Apesar de vir de uma família que se divide entre histórias cesáreas ou partos normais desastrosos eu respondia prontamente a qualquer questionamento sobre o tema: “ela entrou por vias normais, vai sair por vias normais.” E, vez por outra, justificava: “tenho pânico de agulha e ninguém vai me cortar”. Por fim, chegamos às 37 semanas de uma gravidez de notável tranquilidade. Nem vomitar nos primeiros meses eu vomitei. Pouca azia. Algum desconforto com chutes nas costelas ou inchaço nos pés. Mas absolutamente nada que indicasse uma cirurgia, necessária ou não.

Dia 25 de março, uma segunda feira, fomos, o namorido e eu, ao cinema. Completaríamos 38 semanas na quarta feira. Não sei dizer o filme, mas lembro de pegar o celular a cada dez minutos, pois já sentia algumas contrações, e as contava, em segredo. Não me preocupei, já que outra coisa que ouvi bastante durante a gestação é que o primeiro filho nunca chega com 38 semanas. Recebi um telefonema do consultório da GO:

“Ana, você tem consulta amanhã, né?”
“Sim!”
“Vamos deixar para quarta, que é o dia do seu parto?”  (!!!)
“Quarta completo 38 semanas, não é o dia do meu parto. Mas pode remarcar a consulta sim.”

Com a consulta reagendada, na terça, fiz aula de hidroginástica, fui ao Saara comprar qualquer-coisa-indispensável-ao-bem-estar-do-meu-bebê-mas-que-agora-já-não-me-lembro-mais, tomei sorvete, um dia normal. Na quarta feira eu estava, pela manhã, no consultório. Contei pra ela das contrações sem muito ritmo desde segunda feira, disse que me sentia bem. Ela fez o toque – fazia em todas as consultas, tão logo a barriga começou a crescer – e me mandou pra maternidade fazer alguns exames “de rotina”: “Aninha, essa mocinha pode ficar aí mais uns dias, mas pode resolver vir logo também”. Dentre as guias de exames: uma de internação.

Fui pra casa dos meus pais. Almocei e me preparei pra ir a maternidade. Ambos insistiram que eu fosse acompanhada. Mas algo que surgiu em mim desde o início da gravidez foi uma independência que nunca tive. Dispensei a companhia. Dei um abraço longo no meu pai e sorri dizendo: “sua netinha tá querendo chegar”. Nunca me esqueço desse abraço meio sem jeito e emocionado. Parti pra Perinatal de Laranjeiras.

Passei a tarde lá fazendo toda sorte de exames. Tudo normal. Tu-do. Não foi surpresa, nada diferente das 38 semanas anteriores. Todos que me atendiam repetiam animadamente que logo eu estaria com ela nos braços ou poderia ficar ali dentro mais uns dias. Por fim, liguei pra médica e passei por telefone mesmo os resultados. Ela me sugeriu que eu ficasse lá que ela orientaria as enfermeiras pra me colocar no sorinhoe já “resolvia isso logo”. Eu agradeci. Disse a ela que voltaria no dia seguinte ao seu consultório.

Vejam bem, eu, em momento algum, percebi a forma como ela conduzia as coisas e ao me recusar a ficar lá só o fiz por realmente acreditar que minha filha não chegaria tão rápido. Mal sabia eu do que estava me livrando. E só descobriria, algumas poucas semanas depois, o que significava o tal sorinho.

Voltei pra casa dos meus pais. Já com contrações um pouco mais fortes. Aguardei o namorido chegar e iriamos pra casa – do outro lado da cidade – juntos. Me lembro de estar deitada na cama dos meus pais quando percebi que o desconforto virava dor. Chegamos em casa por volta das dez da noite. Contávamos juntos as contrações. Em algum momento eu fui para o chuveiro. Puro instinto, nunca tinha lido nada sobre água quente melhorar a sensação das contrações. Fiquei lá por não sei quanto tempo. Ele diz que cheguei a dormir um pouco sentada num banco com a água caindo nas minhas costas. Outra cena que ainda vem a minha memória é o longo corredor do apartamento onde morava, eu andando de uma ponta a outra e parando pra sentir as contrações, me agachava, me alongava, rebolava. Alguma força maior me orientou naquele momento, alguém me guiava por aquele portal. Ainda que sem conhecimento literal da situação eu a vivia inteira- e intensamente. Saindo do chuveiro fui pra cama pensando “vou logo dormir, pra ir amanhã cedo ao consultório”. Quanta inocência! Me intriga a forma como eu, totalmente entregue e consciente do meu corpo durante o trabalho de parto não tinha ciência plena de que minha filha já estava a caminho. Talvez menos de 15 minutos deitada na cama ouvi um “ploc”. A bolsa estourou. Meu primeiro pensamento “Bosta! Tanto tempo no chuveiro, a bolsa estoura na cama! Logo hoje que foi dia da faxineira!” Só então aceitei que não demoraria para ter minha filha nos braços.

O que segue depois disso são flashes. Namorido demorou pra conseguir falar com a médica. A mala não estava completamente pronta. Era de madrugada e também não foi muito fácil achar um taxi. Apesar disso: tranquilidade, felicidade e ansiedade com o momento, concentração total no corpo. Fechei a mala. A médica não atendia o celular. Não atendia em casa. O auxiliar falou que ela tinha acabado de sair da Perinatal, passou o telefone de casa. Em casa, uma tia idosa, disse que ela estava no banho, pois havia acabado de chegar. Daria o recado. Conseguimos um taxi. Eu pedia que ele fosse devagar, cada movimento mais brusco do carro doía e nesse momento não tinha concentração que ajudasse.

Chegamos a Perinatal por volta de 4h da manhã. Só sei o número por conta da etiqueta que ganhamos. Lembro de ficar feliz por encontrar um segurança sorridente e de me irritar com a recepcionista que me perguntava como eu estava me sentindo. A essa altura, os avós já estavam avisados. Fui levada pra sala do primeiro atendimento onde a moça me deu Buscopan para as contrações. Meu sarcasmo natural me fez rir na cara dela: “é sério que você está me dando um remédio que eu tomo pra cólica?”. Ela sorriu sem graça. No hospital perdi parte do meu controle sobre o meu corpo e a conexão com seja-lá-o-que-estava-me-ajudando em casa. Parece o avental aberto nas costas me dava uma obrigação moral de ficar deitada e isso não funcionava. Em algum momento meus pais chegaram. Lembro vagamente das suas caras de pânico ao me ver em TP. Estavam claramente desconfortáveis com aquilo e não souberam disfarçar. Minha mãe, dias mais tarde, admitiu que me ver em TP foi das coisa mais difíceis pela qual ela já passou. Ela viveu duas cesáreas. Sobre a médica, algum tempo já na maternidade e nem sinal dela. Namorido tenta, sem sucesso, fazer alguma massagem pra me aliviar. E reclama, em algum momento, que estou apertando a mão dele muito forte. Oi?

Em algum momento a médica chega. “Aninha, vamos te levar pro quarto.”, sumiu. Subi pro 613. Falaram em lavagem. Eu falei logo que queria ir ao banheiro. Fui. A médica apareceu de novo, já está na hora de ir pra sala de parto, foi chamar o maqueiro. Eu volto a ter um pouco do controle que havia perdido. Sinto as contrações, mas elas não doem tanto. Tudo respiração e foco. Muito foco. O maqueiro demora dias. E quando ele chega, eu o odeio, me deitam de novo. Namorido volta a “existir” quando eu noto sua ausência por um longo período, me avisam que ele foi colocar as roupas pra entram no centro cirúrgico. Fico no centro cirúrgico sozinha, deitada em posição ginecológica aguardando a equipe e o pai da minha filha. Sinto frio. O anestesista chega para o que foi, sem dúvida, o pior momento do parto: me vira de lado, orienta o namorido a me “segurar firme” e tenta duas ou três vezes até acertar o ponto da anestesia. Lembra lá em cima quando disse que tenho pânico de agulha? Pois é.

A partir daí é tudo muito rápido e intenso. Começo a ser orientada a fazer força sem sentir mais nada. Não sinto dor. Sinto a médica fazendo o corte da episiotomia sobre a qual não falamos. O anestesista, um homem que eu nunca tinha visto até então, apoia um braço sobre a minha barriga e com a outra mão apoia em um dos meus seios. Namorido segura minha mão sem atentar ao que acontecia. Por um micro segundo me sinto violada e não entendo o porquê daquilo, mas minha atenção se volta ao que está acontecendo “embaixo dos panos”. Empurro (empurram por mim?). Ela nasce. Não chora. “Surreal! Surreal! Surreal!” repito incontáveis vezes. Peço que ela venha imediatamente pro meu peito – lembrei de ter lido como isso era importante e fiz muita questão. Mas ela não chora e não pega o peito. “Por que ela não chora?” eu penso “Bebês tem que chorar quando nascem! O que há de errado?” e deixo que a levem de mim. Hoje percebo quão breve foi aquele momento, não dei tempo pra ela se perceber nascida. Ela chora. Eu me sinto aliviada. Peço para ver a placenta – que foi empurrada para fora pelo anestesista. Parte da equipe se retira levando minha bebê. O pai a segue. Na sala ficamos eu, a GO e o anestesista que preenche algum formulário de uma cirurgia anterior. Na conversa entre eles ela declara “nossa, cortei muito! Passava um elefante aqui!” e ri. Eles me parabenizam e saem me deixando sozinha novamente. Penso em tudo aquilo que acabou de acontecer. Algum tempo depois levam minha maca para a porta do elevador onde eu fico por mais algum tempo. Consigo ver o quadro com as taxas de cesárea da maternidade. Me orgulho do meu parto normal. “Eu consegui!” penso. Chego no quarto. Meus pais me recebem com carinho. Vou ver minha filha cerca de três horas depois.


O parto normal me empoderou de tal forma que acabei tendo um puerpério muito tranquilo. Encarei com força e serenidade as dificuldades das primeiras semanas. Mas esse empoderamento me fez buscar informações e descobrir cada violência que sofri no meu parto (a)normal. Não me arrependo, pois sei que a mulher que pariu a Dora fez o melhor que pode com as informações que tinha naquele momento.


*GO - ginecologista obstetra
** DPP - data provável do parto
*** TP - tabalho de parto

Um comentário:

  1. eu sempre me perguntei como é que um passarinho sabe que tem que construir um ninho, ou voar pro sul... talvez a resposta seja a mesma que tenha te feito tomar um banho quente, ou andar de lá pra cá naquele corredor. e é triste como o mundo quer tirar isso da "mulher moderna".

    que coisa importante é você dividir isso, luz!

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